quarta-feira, 23 de abril de 2014

Sobre a Lei da Anistia

Ô tema ardido esse... Aliás, falar qualquer coisa do regime militar brasileiro é ardido. Trata-se de um passado que ainda não passou, ferida aberta. Muita gente foi terrivelmente prejudicada (para usar um termo bem genérico) no período e fica uma forte sensação (totalmente justificada) de injustiça. E, a meu ver, a base desse problema é justamente a Lei da Anistia. Detalhes sobre ela podem ser encontrados aqui.
A Lei da Anistia foi ampla e irrestrita. Colocou uma pedra (lápide ?) sobre tudo que aconteceu de ilegal entre 1961 e 1979 no cenário político brasileiro, e serviu de base para a redemocratização do país. Cito aqui, artigo no Estadão, de Denis Rosenfield. A ideia central da lei era deixar o passado onde estava recomeçar as relações do zero. Daí a ideia de ser uma pedra. Confesso aqui que eu mesmo já fiz algo similar ao reatar relações com um antigo desafeto: pusemos um basta sobre o passado e passamos a conversar como adultos. O sujeito chegou a se hospedar em minha casa uma vez. Nenhuma rusga nunca mais aconteceu e, embora nos falemos pouco hoje em dia, é sempre de modo amigável e cordial.
O que é curioso, pois ao olhar a tal lei digo que, se tive um pouco mais do que os 5 anos da época, eu teria sido radicalmente contrário à criação de tal instrumento. Crime é crime, não importa o motivo ou desculpa utilizado. 
Prender um cidadão sem acusá-lo é crimeTorturar ou  matar um suspeito, por mais culpado que seja, é crimeInvadir casas, violar direitos civis em geral.. é crimeJogar uma bomba em uma banca de jornal e crimeExplodir uma outra bomba mal feita no próprio colo é crime.
Mas sequestrar um diplomata estrangeiro é... crime, não? E criar uma guerrilha também é crime. Atirar em postos militares, matar soldados, jogar uma bomba em uma guarita... tudo isso é crimeEu sou um completo teimoso quanto a isso: quem fez, tem que pagar pelo que fez. Fim

E nesse clima, teríamos um início de anos 80 completamente caótico, com milhares de pessoas presas por todos os crimes acima citados, e tantos mais. Teríamos tido uma transição para democracia muito mais turbulenta, talvez até violenta. Mas esse sim era o caminho para resolver o problema: prender, processar, julgar e condenar corretamente quem saiu da linha nos anos anteriores, de ambos os lados.
Bem... pelo que leio, eu seria minoria na época. Parece-me que houve amplo apoio ao método do "deixa disso" adotado pelas instituições nacionais. É típico de um povo que não luta por seus direitos na escala micro: por que lutaria em escala macro? É burrice aguda, mas é coerente o outras burrices agudas conhecidas.
Isso gerou uma grande quantidade de esquecidos e desamparados pela Ditadura. Pessoas que foram torturadas, agredidas, aleijadas, roubadas em suas posses, presas por motivos injustificáveis e injustificados, parentes de mortos que sequer puderam enterrar seus entes queridos... Todos eles ficaram a ver navios com a promulgação da Lei da Anistia. Em nível nacional, tivemos uma transição pacífica e tranquila para a democracia. Em nível individual, milhares de injustiçados ardiam de ódio pelo que foi feito com eles. E com razão.
O tempo passou e, obviamente, a ferida não fechou. Como poderia? As queixas continuaram a ecoar e aos poucos foram sendo criados mecanismos para aplacá-las. Foram criados fundos indenizatórios para as vítimas do regime e variadas Comissões da Verdade. Boas medidas, nada disso vai ao cerne do problema: prender o torturador. Bem estabelecida está a leitura da Lei da Anistia. Tanto os torturadores quanto os terroristas (guerreiros da liberdade ? sei...) foram anistiados. Fim.

Fim ?
Agora querem alguns cutucarem esse vespeiro nada calmo. Fala-se em revisão ou revogação da lei. Mas observa-se que querem mexer apenas em parte do problema. Querem torturadores presos, mas não os guerrilheiros. 
Ah, muleque... Este país gosta mesmo de um casuísmo, não? Querem mudar, mas do jeito deles. Os amigos que passaram da conta, nossa presidente inclusa, ficariam protegidos. Realmente, é um nível completamente novo de sacanagem. Maquiavel ficaria corado.
Um dos problemas é que o Brasil é signatário de acordos internacionais de proíbem a prescrição ou anistia da tortura. Esses acordos são incompatíveis com a manutenção da Lei da Anistia.
Por outro lado, revogar a lei feri um dos princípios básicos do direito penal: o da irretroatividade da lei, exceto para beneficiar o acusado. A Lei da Anistia faz exatamente isso, e portanto, parece-me, irrevogável sem quebrar um dos alicerces do direito penal.
Ou seja, estamos em um beco sem saída. 

Estaríamos, se estivéssemos em outro país. Já anuncio aqui a solução que será adotada. Enquanto a presidente se diz contrária a mudar a Lei da Anistia, seus ministros falam abertamente nesse assunto. O nome disso é contradição controlada. Enquanto a presidente agrada os potenciais acusados, incluindo os colegas de partido, os ministros agradam os órgãos internacionais. 
Enquanto ficar nesse esquema, tudo está sob controle. Cedo ou tarde, a pressão externa pode subir. Se, e quando, isso acontecer, o governo (este, ou qualquer outro) imediatamente cria um projeto de lei e envia ao Congresso para análise. E daí o projeto vai dar voltas e voltas nas variadas comissões das duas casas. Leva uns 3 anos até alguém rejeitar de fato. Se isso acontecer e a pressão tiver diminuído, toca-se o barco. Se ainda estiver forte, faz-se nova versão e o jogo de cenas recomeça. 
Em algum momento, o projeto pode acidentalmente cair em plenário. Basta não ser votado e ele mofa por lá outro quinquênio fácil, fácil. Qualquer órgão externo que elevar o tom acima de certo nível pode ser taxado de ingerência e que estamos fazendo tudo pelas vias institucionais. 
E segue-se essa lenga-lenga por não menos que 20 anos. Daí, quando a esmagadora maioria dos acusados já tiver morrido, aprova-se algo altamente rebuscado e completamente inefetivo. Um senhor de 81 anos, soldado raso em 1971 vai ser preso por ter torturado alguém importante. Não tenho dúvidas de que ele realmente cometeu o delito. 
E assim, vamos fingindo que somos um país.

6 comentários:

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  2. Pergunta, os acordos internacionais são compatíveis com a prescrição do terrorismo? Se forem incompatíveis, além da tortura praticada pelos militares na ditadura serem imprescritíveis a ação de grupos armados/ terroristas (leia-se guerrilheiros) também seria?
    No mais ao meu ver (impessoal) a prisão deveria ser um local para se manter pessoas que podem prejudicar a sociedade durante tempo suficiente para garantir que ela mudem de índole ou atitude de forma que quando saíssem de la não prejudicassem mais a sociedade. A ideia de prender alguém para provocar sofrimento é a justiça de olho por olho dente por dente. Claro que quero (pessoalmente) que o criminoso que me prejudicar sofra mas o sofrimento de um criminoso não contribui em nada para a sociedade. A "sede de justiça" querendo que o estuprador vá ser estuprado por outros detentos é revanchismo / ódio / raiva. Pessoalmente não acho válido prender um torturador de quase 80 anos para fazer "justiça" não acho que isso seja justiça e se isso diminuir a dor dos familiares de pessoas sumidas, bom. acho que essas pessoas estão com motivações meio deturpadas pois tem sua dor focada não na perda que sofreram mas no ódio que sentem (o ódio não é um motivador lá muito saudável...). Não sou da turma do deixa disso, mas no andar da carruagem, deveriam deixar isso para lá por mais uns 30 anos daí já vai ter morrido todo mundo mesmo e dane-se, pizza para todos :P

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    1. Helga, apenas para esclarecer, exite uma série de estudos sobre o tema que apontam 3 eixos principais em uma pena para um criminoso: proteção da sociedade, correção de conduta e vingança. Os três estão inerentemente presentes e, em maior ou menor grau são vistos como necessários para a estabilidade do tecido social.
      Do mesmo modo, estes estudos deixam claro que a soma dos 3 componentes precisa ser menor do que o crime praticado, ou ocorre uma escalada de ódio que só pode destruir esse mesmo tecido.
      Mas não podemos ignorar o componente vingança: sim, ele existe, está lá e não é viável eliminá-lo.

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  3. Antes de começar: tudo o que você citou como sendo crime (invasão, prisão, tortura) efetivamente ERA crime na época (e falo do que estava escrito, não da sua ou da minha opinião)? Não parece mas faz muita diferença.

    Norson, acho que talvez algo muito importante sobre as leis tenha sido deixado de lado: a legitimidade. Existe legitimidade em se prender alguém HOJE por conta de coisas que ocorreram na ditadura? Falo aqui do conceito sociológico, e não do Direito.

    Lembre, legitimidade a grosso modo se baseia em três pilares (incrível como sociologia gosta do número 3):

    1) a autoridade/lei é justa?

    2) a autoridade/lei é previsível?

    3) a autoridade/lei vai ouvir as pessoas caso elas se manifestem?

    A resposta desses três pilares explicam porque, por exemplo, a polícia de Nova Iorque teve tanto sucesso em Brownsville enquanto o exército britânico teve um fracasso tão grande na Irlanda do Norte (o que basicamente levou à criação do IRA e à anos de atentados e confrontos). E de certa forma explica inclusive a Lei da Anistia.

    Outro ponto a ser considerado é o quão efetiva é a severidade da punição. Para esse caso, cito um estudo feito por Anthony Doobs e Cheryl Marie Webster, motivado pela famosa lei das Três Infrações da Califórnia. O resumo de todo o estudo pode ser visto no seguinte trecho:

    "Uma avaliação razoável das pesquisas até agora - com um foco particular em estudos conduzidos na última década - é que a severidade das penas não tem efeito sobre o nível de criminalidade na sociedade [...] Nenhum conjunto sistemático de publicações se desenvolveu nos últimos 25 a 30 anos indicando que sanções duras desencorajam crimes."

    Falei isso tudo para concluir o seguinte: a punição é dura demais e tardia demais para ter qualquer efetividade. E principalmente, por conta da situação em si, é praticamente impossível dar legitimidade à ela hoje.

    Logo, para mim, estamos tentando fazer o certo na hora errada, e isso ao invés de corrigir um erro, vai é gerar outros (consigo até ver famílias de torturadores entrando com pedidos de indenização porque o vovô foi condenado hoje por algo que supostamente fez décadas atrás e cujas provas são totalmente circunstanciais...).

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    1. Por partes.
      1) Entendo que, sim, a tortura seria moralmente punível. Eu entendo e concordo com o conceito (social, não jurídico (embora concorde com o jurídico também) ) de prescrição de pena tanto quanto com as exceções à aplicação do mesmo. Assim, entendo que não se pode deixar passar em branco certas coisas.
      2) Sociologia gosta do número 3 porque sociólogos só sabem contar até 3.
      3) No entanto, do ponto de vista prático, acabamos concordando que não é uma boa ideia. Curioso não ?

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  4. Não é curioso. É puro bom senso: quanto mais você mexe em excremento, mais ele fede.

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