Depois do fechamento da FNAC (aqui), e do pedido de recuperação judicial da Livraria Cultura (aqui), hoje foi a vez da Saraiva (aqui). Não posso mais ignorar o assunto e vou ter que escrever sobre.
Um pouco de história, para começar.
Lá nos anos 70, quando a população brasileira tinha mais de 30% de analfabetos (alguns falam em 50%), o mercado editorial era composto por grandes editoras e livrarias espalhadas pelo país. Com custos elevados de produção, as editoras eram obrigadas a fazer tiragens enormes para atingir um custo unitário aceitável. Com isso, só era possível publicar grandes autores, nacionais ou estrangeiros, mas que tinham venda certa. Qualquer coisa fora disso era um risco enorme: pequenas editoras ou a publicação de autores pouco conhecidos. O poder do mercado estava todo na mão do livreiro, que exigiam descontos e condições abusivos das editoras para venderem, mas pelo menos não eram organizados o suficiente.
Nos anos 80 duas coisas mudam. O parque industrial é modernizado, com equipamentos menores, mais baratos, de menor custo e mais confiáveis. As tiragens podem diminuir, o que permite o lançamento de mais títulos. Por outro lado, populariza-se o shopping center no Brasil. Não que os shoppings não existissem antes, mas a explosão de empreendimentos dessa natureza trouxe espaço para livrarias novas. A combinação das duas coisas deu força ao sistema de redes. Somente as redes têm condições de lidar com o aumento de títulos e de pontos de venda simultaneamente, tamanho o capital exigido para isso. É nessa época que vivem sua era de ouro a 3 grandes redes de livrarias no Brasil: Saraiva, Siciliano e Nobel. Alguns dos shoppings maiores chegavam a ter uma de cada. O poder do mercado estava na mão das redes, que exigiam condições ainda mais abusivas das editoras. Surge a prática da consignação: a livraria só compra o livro depois de vender, e paga a perder de vista. O editor fica com todo o risco da operação.
E assim estamos nos anos 90. O grande fator desse momento é o PC (personal computer). Embora caro, era viável qualquer casa de classe média ter um em casa. A disseminação dos softwares torna possível para qualquer pessoa que tivesse um ideia e um teclado escrever um livro. A oferta de títulos explode, muitas vezes com editoras operando em meio período no computador do autor, fazendo impressões em tiragens menores. Foi quando eu mesmo entrei no mercado, pela Daemon Editora. Surge, então, um novo player: o distribuidor. Ele faz um meio campo entre a editora e a livraria. Não é prático para um editor sozinho, com 3 títulos em catálogo, tentar colocar seus produtos nas redes. Não é prático para o pequeno livreiro ir comprar cada título de cada pequena editora: ele não tem capital, espaço, conhecimento ou público para fazer isso. O distribuidor amortece o problema e fica com uma gorda porcentagem por isso. É ele, distribuidor, que tem o poder do mercado.
Vira o milênio, e estamos nos anos 2000. Amazon. O comércio eletrônico de grande porte nasce e muda o mundo irrevogavelmente. E tudo começou exatamente nos livros, que se diga. O consumidor adere, especialmente aquele fora dos centros urbanos. Pode ser muito lindinho visitar a livraria Cultura da Paulista, mas quando você mora a 200km dela, só pra começar a conversa, um site e três clicks resolvem de fato a compra do próximo Harry Potter. O poder migra para os grandes sites locais ou internacionais. As editoras, capazes de fazer tiragens cada vez menores, podem multiplicar seus títulos e fazem a entrega por demanda para o grande portal de vendas online. Ainda assim, as condições de pagamento beiram o ridículo.
Chegam os anos 10. A vida é online e traz 3 novidades. Primeiramente, qualquer um pode gerenciar sua marca nas redes sociais. Qualquer um pode fazer anúncios e lançamentos. O consumidor encontra o editor com uma busca simples, e pode interagir com ele. A segunda mudança mudança é a capilarização do e-commerce. Não é mais necessário entrar em um grande site para comprar algo: pode-se comprar direto do produtor. E não se trata apenas de livros, vale para qualquer coisa. Diversos editores, sem necessariamente abandonar outros canais, focam na venda direta. Pode-se vender com desconto, pode-se vender autografado. E pode-se fazer um financiamento coletivo, a terceira mudança para compartilhar os riscos. Os grandes sites desistem dos livros físicos, exceto pela Amazon, que entendeu a migração tecnológica e partiu para o livro digital. O poder do mercado de livros digitais é da Amazon, o poder do mercado de livros físicos é das editoras.
E como as redes quebraram ?
A verdade é que as redes sempre maltrataram, e muito, as editoras. Nos anos 90, com o fim da inflação, ela passaram a dilatar os prazos de pagamento para fazer giro de caixa. O que se pagava inicialmente em 30 dias passou para 45, 60 e chegou a 90. Imaginem isso: o editor já pagou pela revisão, diagramação e impressão, e está pegando pela estocagem. Precisa consignar o livro para a rede, que fecha mensalmente as vendas e paga três meses depois.
Quando a situação apertou para as redes no anos 10, a solução foi explorar ainda mais a editora. Os espaços nas prateleiras passaram a ser vendidos. Aquela editora que pagou aquilo tudo no parágrafo acima ainda tinha que pagar coisa de 2 mil reais mensais por uma mísera prateleira para expor seus livros em uma loja e talvez (talvez !) vender alguma coisa.
Veio a quebradeira generalizada e muita editora vai ficar sem receber. Agora eu pergunto ao amigo leitor: você acha que algum editor está com peninha da Saraiva? Ou teve peninha da Nobel e da Siciliano antes?
Lasquem-se.
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