quarta-feira, 13 de abril de 2016

Videogames e Família (1)

Acho que foi em 1983. Pode ter sido um ano antes ou depois (antes é até possível, mas depois acho pouco provável). Fiquemos com 1983, então.
Eis que minha Tia Ruth aparece, sem aviso prévio, com um Atari 2600 na caixa para eu e minha irmã. Sempre fui um moleque muito atento aos movimentos familiares. Eu sabia de antemão os presentes que iria ganhar de aniversário, dia das crianças e Natal (que eu não tinha como evitar fazer parte). Então eu soube com antecedência do Autorama, de cada bicicleta, dos conjuntos de playmobil... 
Mas o Atari veio do nada. Não vi chegando. Fácil afirmar que foi uma das minhas maiores alegrias (e sei que Dona Ruth vai ler isso), pela soma do presente em si com a surpresa.


No entanto, o Atari 2600 trouxe para toda uma geração de crianças um novo tipo de conflito: o uso da televisão. Hoje em dia é fácil uma casa ter um aparelho por morador, mas nos 80 era piada pensar nisso. E o videogame não tem uma tela própria, como os computadores viriam a ter poucos anos depois. Então era necessário compartilhar o aparelho.
Não era tão incrível assim compartilhar a programação da televisão: os desenhos animados passam em um horário, a novela em outro e o futebol em um terceiro (apenas para desenhar uma família bem padrão). Não havia centenas de canais a cabo como hoje. Então cada um fica no seu quadrado e não havia problemas. 
Mas o videogame deturpou essa organização. Era possível, em tese, jogar Atari em qualquer hora do dia ou da noite. Não havia qualquer empecilho técnico a enfrentar os fantasminhas do Pac-Man às 8 da noite. O empecilho era social, amigo leitor: a maldita novela das 8 era o inimigo durante a semana e o Silvio Santos o inimigo no domingo.

O videogame, pouca gente notou, perverteu a hierarquia familiar do lazer televisivo. Nossos pais não tinham mais o monopólio do interesse televiso noturno. Antes do Atari, cabia às crianças ficarem quietas vendo a novela, ou até irem dormir, provavelmente de tédio. Agora elas podiam torcer para aquela porcaria acabar logo, pois ainda dava tempo de jogar mais um pouco. 
Isso sacudiu a geração deles, nossos pais, de modo que ninguém estava preparado para entender. Muitos simplesmente não souberam lidar com a novidade. Sentiam-se importunados, ameaçados pelo console e nem sabiam disso.

O leitor pode achar exagero, mas aconteceu com este blogueiro e com muitos de meus colegas. Minhas aulas eram à tarde entre 80 e 84. Antes do advento do Atari, eu fazia minha lição de casa no dia seguinte, pela manhã e isso era natural. Mas quando o Atari chegou, fazia todo sentido terminar a lição a noite, no mesmo dia, de modo a ter a manhã livre para jogar. Isso evitava a competição perdida pela televisão no horário noturno.
O nome disso é planejamento, e é lição importante e útil para uma criança de 9 anos: administrar o tempo é uma tarefa complicada de se aprender. Mas os pais se assustavam com a fuga infantil da sala. Terminado o jantar, eu e muitos da minha idade corríamos para o caderno terminar tudo que estava pendente ainda à noite. Não estávamos mais na sala, passivos, obedientes, vacas de presépio achando aquela chatice da novela (gente, no final, não vai todo mundo casar do mesmo jeito ?!) um entretenimento aceitável. Os mais novos tínhamos opinião própria pela primeira vez desde que um macaco dissidente desceu da árvore 500 mil anos antes: preferíamos fazer a lição em vez daquilo, para poder ligar o jogo no dia seguinte. Incrível como o conceito de crianças terem opções ressentiu alguns pais nos idos de 80.

A turma que estudava pela manhã teve mais problemas ainda. Nós, da tarde, podíamos alegar na maior cara de pau que "era muita lição, pode não dar tempo de terminar amanhã", e ninguém tem o direito de contestar isso. A rigor, poderia ser verdade. Mas a turma da manhã tinha que adiar a lição da tarde para a noite e isso era uma brecha perigosa. Muitos pais, ciumentos de perder a primazia, não permitiam a troca de horários com base no mesmo argumento: "você vai fazer a lição à tarde, pois mais tarde não vai querer/conseguir fazer tudo". Sei disso, pois em 85 passei para o período da manhã.

Somos uma geração que teve a oportunidade de aprender a gerir o tempo muito cedo. Mas também somos a primeira geração que brigou por direitos caseiros antes dos 10 anos de idade.
Amanhã eu volto com meus casos pessoais.

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