sexta-feira, 7 de dezembro de 2012

Posso ?

Comecei a treinar no final do outono de 1999, como a esta altura todos sabem. Portanto, logo se seguiu o verão e o calor de São Paulo pode ser um tanto cruel.
Como eu já havia sido praticante de outras modalidades de artes marciais, a questão de obedecer instrutores e seguir regulamentos não era nenhuma novidade para mim. Mas nem por isso eu estava adaptado ao sistema de treino e o corpo reclamava das dores iniciais de treinamento que, creio, todos os colegas tiveram em maior ou menor grau. Eu ainda era faixa branca, mas já sonhava com o exame que faria algumas semanas depois. E a sede, no calor, pega.
Um dia, eu fui treinar mais cedo, durante a tarde. Estava estressado com alguma coisa do trabalho e, como fazia home office, tinha essa liberdade. Foi uma boa estratégia, exceto pelo calor intenso. Amigos, estava realmente quente aquele dia. 
O instrutor comandava o treino em ritmo normal, o que é muito mais intenso que os dias de hoje. Ele me mandou repetir a parte que eu sabia do Tam Tui (na época era matéria da branca) alguma vezes. Três, eu acho. Obedeci sem pestanejar. Mas eventualmente, a ordem estava cumprida e eu estava, digamos, ocioso. 
Aproximei-me do instrutor e aguardei pela sua atenção. Eu disse:
- Posso tomar água ?
Ele me olhou com firmeza e respondeu:
- Pode. Mas depois fale comigo.
Não entendi, mas não era complicado de fazer, certo? Fui ao vestiário, tomei minha água e me reportei a ele conforme comandado. Ele olhou para mim e disse:
- Foi a última vez
- Desculpe, não entendi...
- Foi a última vez que eu deixei você tomar água. Acostume-se a treinar sem. Nem peça mais.
Eu gostei daquilo! Era um novo desafio proposto e, sejamos honestos, perfeitamente factível. Eu sorri e perguntei.
- Eu devia ter guardado isso para uma faixa mais avançada ?
- Devia sim. Mas agora está feito. - E sorriu de volta.
Nunca mais pedi. Depois daquilo, tomei água durante os treinos apenas duas vezes. Em ambas, recebi ordens expressas (uma vez do Mestre Gabriel e uma vez da Sayuri) de tomar água, o que também obedeci prontamente.
Mas posso afirmar, com razoável grau de certeza, que nunca morri de sede.

7 comentários:

  1. Tomar água ou não durante um treino é algo quase tão controverso quanto alongar ou não antes de um treino.
    O que eu notei, e que funciona bem para mim, é que os treinos que costumam dar mais sede são os treinos, no jargão de academia, cardiorrespiratórios. E são esses os que menos precisam que você tome água de fato.
    Já treinos pesados de musculação não dão tanta sede, mas eu cansei de levar esporro por não parar para tomar água, principalmente em dias quentes. E preciso concordar que em dias realmente quentes, nenhum ar condicionado resfria mais o corpo do que um bom copo de água gelada.

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  2. Ah, e antes que eu esqueça: tem o caso da tal da variação pessoal. Se para você ou eu isso não é problema, tem pessoas que eu conheço que se não tomam água durante o treino simplesmente desmaiam. A Lu por exemplo é dessas, mas ela não é um bom exemplo porque ela treina mais pesado do que nós dois juntos... :P

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  3. A questão da água que o Norson disse não tem nada a ver com se é bom ou não, se faz bem ou não, se é necessário ou não. Tem mais a ver com o treinamento disciplinar da mente como o Norson disse resistir e enfrentar o desafio.

    Em nossa escola entendemos que temos que aprender a usar o nosso kung fu em situações adversas, portanto, sempre digo aos alunos que devemos aprender a treinar no calor intenso, na chuva, na lama, sobre o gelo, dentro da água e sem reclamar. Mas, entendo que esse é um preceito apenas de nossa escola.

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  4. Esqueci, entendemos também que os alunos de Kung Fu devem aprender a obedecer ordens, mesmo que as vezes elas possam não estar cem por cento corretas.

    Da mesma maneira que um soldado não deve desobedecer seu comandante querendo primeiro bater um papo cabeça antes de obedecer a ordem. Entendemos que arte marcial é assim também.

    Não estamos em guerra, mas treinamos como se estivéssemos, apenas pelo adestramento da mente e do corpo pra enfrentar o dia a dia dessa selva de pedra que não deixa de ser uma batalha.

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  5. Quanto à questão fisiológica da água, o Rodrigo tem razão. Mas o foco é mais para a questão marcial mesmo.
    Não acho, Mestre, que os tempos sejam os mesmos que quando recebi essa ordem do instrutor. Hoje é normal alunos graduados pedirem pra tomar água, especialmente em dias muitos quentes.
    Mas eu sou o mesmo daquele dia. E enquanto não vier uma contraordem, não vejo porque eu deva mudar de atitude. Mas, de novo, este sou eu. E o que é bom para mim pode não ser bom para o outro.

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  6. Eu entendo bem essa parte da disciplina. Eu treinava num dojo onde as situações mudavam o tempo todo, mas a única constante era que nunca questionávamos o sensei. Pelo menos eu não questionava, e as coisas mudavam às vezes no nível de fazermos um treino leve num dia para no dia seguinte termos um treino pesado de 6 horas de duração sem aquecimento, alongamento ou pausa para água.

    E obviamente sem aviso nenhum.

    O ponto é que, por razões que vão desde questões médicas até quais são os objetivos da pessoa no treino, não necessariamente isso é bom para todos. O que é bom para cada um sempre se resume a uma pergunta:

    O que a pessoa quer?

    Pegando o kendo como exemplo: o aluno em questão quer mesmo aprender a lutar? Quer apenas aprender as formas porque acha bonito? Ele quer só perder peso ou quer aprender como cortar sem ser cortado? Quer aprender todo o currículo de um dado estilo de kendo (que pode, em alguns casos, englobar até astrologia, dança e poesia) ou só quer aprender a usar uma espada?

    Todos são motivos igualmente válidos, mas cada um dos motivos leva à pergunta de se a pessoa está no lugar certo.

    Em resumo, não era minha intenção (e nem é meu direito) questionar se uma dada regra está certa ou não, mas sim apontar que não é porque uma pessoa não segue uma dada regra que ela está errada. Mesmo considerando a questão marcial, a pessoa pode não ser capaz de cumprir (nesse exemplo da água, diabéticos me vêm à mente) ou a regra pode não fazer nenhum sentido para os objetivos dela.

    Mas claro, aí depende de se a pessoa de fato sabe o que quer ou, o que costuma ser mais comum, se ela realmente quer o que diz querer...

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  7. Se a pessoa é diabética ela vai falar e se ela fala o instrutor acata ou a deixa morrer. Questão de sensibilidade.

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