segunda-feira, 17 de dezembro de 2012

Você não merece...

Embora eu não fique relatando isso aos quatro ventos, não é segredo que meus primeiros passos nas artes marciais foi no judô. E foram vários passos, pois fiquei lá dos quase 8 aos 14 anos de idade. Fui matriculado com o Sensei Machusso, a quem devo respeito a agradecimento por muito que ele me propiciou.
A ideia de treinar judô foi do meu hoje falecido pai, ele mesmo que havia treinado quando garoto. Esta belíssima história que relatarei não é minha, mas dele. Realmente recomendo aos seguidores do blog que invistam alguns minutos de suas vidas nisso.

No final da adolescência, meu pai (também chamado Norson para quem não sabe) treinou judô com o Sensei Kurachi. Em uma atitude muito atípica, especialmente entre jovens, ele optou por não disputar faixas, permanecendo anos na faixa branca. No judô, a faixa importa pouco pois o aprendizado não é estruturado em uma ordem "correta" e fixa. Mas a necessidade de se provar melhor nos faz buscá-las. A atitude do meu pai imediatamente o colocou em boa conta com o sensei.
Nessa época, havia um aluno faixa preta encrenqueiro na academia. Provocava pessoas na rua, em festas e em bares. Com a boa técnica que tinha, enfrentava dois ou até três oponentes sem dificuldades. Batia sem dó nas vítimas aleatoriamente escolhidas. 
Isso não é atitude de gente honrada e no judô isso é coisa séria desde a criação dessa arte no século XIX. Eventualmente o assunto se espalhou e chegou ao ouvido do sensei, que tratou de punir o rapaz. Convocou um treino especial em um horário alternativo, com a presença de todos os faixas pretas e meu pai. Ao chegar, o rapaz percebeu um clima pesado, mas não imaginou o que viria. 
Sensei Kurachi colocou o rapaz no meio do tatame com todos os alunos envolta. Passou-lhe uma descompostura épica dizendo que arrumar brigas não era coisa de homem, muito menos de judoca e ainda menos de faixa preta. Segundo meu pai, a bronca levou cerca de 90 minutos, e quem tem contato com japoneses sabe que ele podem gritar por bem mais tempo que isso quando necessário.
Ele então deu início a um treino físico como jamais havia sido visto na história da academia. Foram duas horas apenas de exercícios. Mesmo os faixas pretas mais antigos sentiram o peso do treino e o rapaz, por vezes desabou. Em todas foi erguido aos berros pelo sensei.
Isto feito, voltou-se a formação inicial, e o sensei convocou cada faixa preta a lutar com o rapaz, em uma espécie de shiai ritualístico. Os faixas pretas receberam ordens de vencer a todo custo. Todos venceram, alguns com alguma maldade na técnica. Mas nenhum deles o machucou ou quebrou algum osso: ele apanhava, mas seguia em condições de continuar apanhando. Um dos faixas pretas entre os mais ofendidos pelo nome da academia ter sido manchado em vez de lutar deu um soco no rosto do rapaz, dizendo:
- Você não merece um golpe de judô. 
Na vez do meu pai, que tinha técnica bastante inferior, o sensei ordenou:
- Deixe o Norson vencer. 
Já aceitando a punição, ele cumpriu a ordem e meu pai o derrubou em poucos segundos com a mesma dificuldade que levaria para derrubar um saco de batatas. E o massacre seguiu até todos terem lutado com ele. Todos venceram na técnica, com exceção apenas do meu pai (que foi ajudado pela ordem do sensei) e daquele faixa preta que deu um soco.
Ao final, o sensei mandou o rapaz tirar a faixa preta, o que ele obedeceu prontamente. O sensei disse então:
- Deixe sua faixa preta com o Norson. Ele vai guardá-la até que você a mereça novamente.
A lição foi aprendida de imediato. Nunca mais o rapaz arrumou briga. Em um caso, chegou a ser agredido sem motivo em uma confusão que nem era dele e, segundo relataram, recusou-se a reagir. Treinou firme por meses, com evolução nítida na técnica. Provou seu valor e recuperou sua honra em silêncio, até porque nenhum faixa preta da academia sequer lhe dirigia a palavra nesse período. 
Depois de meses, Sensei Kurachi considerou o castigo finalizado e convocou outra sessão de treinos, nos mesmos moldes da primeira com sutis diferenças.
A primeira diferença é que a segunda sessão não foi em horário especial, mas no horário normal de treino do rapaz. Ele foi pego de surpresa, portanto. Não houve sermão desta vez. Ao contrário, apenas uma meditação curta, de 5 minutos. O treino físico foi igualmente duro. As lutas também.
Mas o resultado foi ligeiramente diferente. Desta vez, o rapaz foi até mesmo capaz de vencer algumas, especialmente no começo quando ainda estava menos cansado. Segundo meu pai contou, ele deve ter vencido entre 1/5 e 1/4 das lutas todas, mas as vitórias foram todas antes da metade do shiai, quaando ainda tinha condições física de lutar.
Quando chegou a vez do faixa preta que o havia socado, o rapaz até tremeu o corpo, mas não fugiu nem recuou. Houve luta. Ele foi vencido por ippon
Na vez do meu pai, a mesma ordem:
- Deixe o Norson vencer. 
Terminadas as lutas, o sensei fez um sinal para meu pai, que correu no vestiário buscar a faixa preta do rapaz. Ele a recebeu aos prantos, assim como os colegas o receberam de volta aos sorrisos.
Isso, amigos, é uma coisa chamada honra. Não vejo mais essas coisas nos dias de hoje.

4 comentários:

  1. Este comentário foi removido pelo autor.

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  2. Grande Norson

    Realmento o Judô molda o cidadão baseado em prícipios, tais como, o respeito, prosperidade e benefícios mútuos. Posso dizer que uma consideravel parte do que sou hoje é graças ao Judô. Só fico preocupado com a profissionalização do esporte que pode levar a descaracterização da essência filosófica oriental. Só espero que isto não ocorra...

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  3. Isso me lembra uma história que o meu sensei contou uma vez, de um colega dele que havia sumido do dojo por quase um ano sem dar satisfação nenhuma. Quando ele voltou, o sensei mandou ele ficar em seiza, esticar os braços e segurar uma espada até o final do treino ou ir embora e não voltar mais.

    Olha, se me lembro bem a espada em questão tem uns 4 quilos. NO final do treino, o cara tremia e chorava de dor, mas não largou a espada. Tiveram que ajudar ele a abrir os dedos.

    Essas coisas hoje em dia não acontecem mais. Quer dizer, acontecem, mas só em dojos sérios, e esses andam cada vez mais raros...

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