sábado, 27 de julho de 2013

Geração Video-Game

Sou exemplo claro e bem definido da primeira geração video-game. O Atari 2600 mudou minha vida, não há como negar isso. A maneira de ver o mundo, os interesses, as disputas entre amigos e até o sedentarismo epidêmico que vemos hoje tem origens naquela caixa de plástico preto com conectores estranhos e dois dispositivos de controle com uma manopla direcional e 1 único botão vermelho no canto superior esquerdo. 
No entanto, foi uma mudança longe de ser tranquila. Os garotos que jogavam bola, quebravam vidraças e pulavam muros para roubar frutas e atormentar idosos sumiram das ruas para dentro das casas. A violência urbana começava a crescer nos anos 80 e muitos pais acharam isso uma ótima ideia. Os carrinhos em miniatura, o futebol de botão e caminho de várzea perderam interesse e só o que importava eram pontuações no Pac-Man e River Raid. Por outro lado, ela consumia uma televisão, muitas vezes para um único interessado, e isso não ia ser fácil para quem queria ver a (porcaria da) novela das 8. Surgiram regras de conduta e horários de uso. E disso vem meu relato a seguir.
Meu Atari foi presente de minha tia Ruth para mim e minha irmã. Sem dúvida, foi o presente mais marcante que ela me deu em toda a vida, e observe-se que aos 18 anos eu ganhei dela o curso da auto-escola para tirar minha CNH. Por motivos que posso até reproduzir mas jamais entenderei, meu pai recusou a entrada do aparelho em casa. O Atari tinha que ficar na casa dela (minha tia). Ainda bem que era na casa ao lado... E toca ajustar horários com tia a avó (que também morava lá) para termos acesso à única televisão da casa e usar no amado atari. 
O video-game tem uma característica cruel mesmo nos dias de hoje: quanto mais se joga, melhor se fica. Parece um comentário bobo, mas logo com uma semana de uso eu comecei a estabelecer minha supremacia sobre minha irmã. Nada a ser coroado: 3 anos mais nova, era natural que tivesse menos coordenação do que eu. Mas os jogos da época eram uma questão de sobreviver aos perigos do jogo. E quanto melhor se joga, mais se sobrevive e, portanto, mais se pratica. E como a prática leva à perfeição, quem fica melhor, joga mais. Forma-se um ciclo virtuoso para quem joga: quanto mais joga, mais consegue jogar. Então o mesmo ciclo se torna vicioso para o outro, ou outra no caso. 
O que na primeira semana eram minutos quase imperceptíveis em poucos meses tornaram-se horas de diferença. Eu era capaz de jogar 2 horas de Pac-Man em uma única partida. Minha irmã, sem chance de treinar, estava estancada nos 10 minutos, e olhe lá. E, verdade seja dita sem modéstia, eu era bom naquela merda.
Claro que ela reclamou da diferença de tempo de jogo, e com razão. Mas aí surgiu o problema dos pais não conseguirem (e em parte não quererem) entender a natureza do aparelho:
- Deixe sua irmã jogar.
- Mas ainda é minha vez !
- Não interessa: deixe ela ela jogar agora !
- Mas só faltam 3 mil pontos para eu bater o recorde.
Puf... Tomada puxada. Gritos justos e choro honesto: era a pura verdade o que eu tinha dito tanto a respeito de ainda ser minha vez quanto a respeito do recorde. Eu não podia provar nenhum dos dois, mas afinal, quem é que realmente dá ouvidos ao filho mais velho, qualquer que seja a família ?
Tentei de tudo. Propus horários de jogo demarcado: ela jogaria no horário X e eu no Y. Propus eu jogar primeiro sob atenção do relógio e ela ter direito ao mesmo tempo de jogo depois. Propus até mesmo trocar meu horário da lição de casa para qualquer outro que não fosse o dela, de modo a aumentar o tempo de acesso ao atari. Nesse ponto, meus pais realmente já estavam de total má vontade comigo e recusaram gratuitamente todas as sugestões com um único argumento:
- Vocês tem que "jogar de dois". 
- Mas isso não existe !
- Não interessa: "joguem de dois".
Anos depois, com os jogos de luta e mais tarde ainda com os adventures cooperativos seria outra história. Na época do ataria, isso não existia. Talvez os jogos de luta tenham sido criado para resolver esse tipo de situação...
Sei que o tempo passou e minha irmã desinteressou-se do atari. Passei a jogar sozinho, calmo e em paz comigo mesmo, dentro da minha concha. Um belo sábado a tarde eu passava pela cozinha indo para minha tia jogar atari. Minha mãe estava alvoroçada na cozinha com as receitas que fazia e puxou conversa de passagem:
- Onde você vai?
- Na tia, joga atari.
- Ok, pode ir.
- Mãe, que bagunça toda é essa na cozinha?
- É que eu estou fazendo um bolo e um pão ao mesmo tempo. Deixei o bolo descansando enquanto assa o pão.
Tive uma epifania nesse momento:
- Ué... não dá para "assar de dois"?
- Como?
- Igual vocês querem do atari.
- ... não entendi, filho...
- "Assar de dois", mãe. Coloca o bolo e o pão ao mesmo tempo no forno.
- Filho, não tem como. O forno não foi feito para isso.
- Ah... o aparelho não foi feito para isso. Interessante, não mãe ?
Ela ficou em silêncio, mas o olhar denunciava a compreensão do argumento. Fui embora jogar, mas antes de ligar o atari, eu já tinha vencido. Mal teve graça naquele dia.

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