sábado, 12 de abril de 2014

Estado x Indivíduo

Aí temos um assunto que dá pano para manga. Até onde vai, ou deveria ir, a capacidade do Estado interferir na vida do indivíduo?
Ouve-se respostas extremadas, de parte a parte. Os liberais querem uma fronteira distante, onde podem fazer o que bem querem consigo mesmos. O corpo seria um templo sagrado do indivíduo. Os conservadores querem uma interferência rígida, forte presença e regulamentação. Ambos tem argumentos válidos. Pois vejamos.
Do lado liberal, temos que respeitar gostos e decisões das pessoas. Leis e regulamentos muito rígidos, além de causar aborrecimentos totalmente inefetivos, rasgam até mesmo o desenvolvimento individual. Perdem-se talentos, perde-se felicidade. De fato.
Do lado conservador, precisamos lembrar que nem todos tem a maturidade que gostaríamos que existisse. De fato, há muitas crianças de 40 anos pelo mundo. O melhor exemplo recente é precisamos dobrar o valor das multas para quem for pego dirigindo alcoolizado. Essas pessoas precisam ser protegidas delas mesmas, assim com a sociedade precisa ser protegida. De fato, também.
Daí temos o Estado, que na visão utilitarista que me agrada é um conjunto de instituições que tem por objetivo maximizar a felicidade do coletivo. Por felicidade, temos um sem número de itens a serem contemplados, muitos dos quais contraditórios. E aí começam as rusgas e, por conseguinte, as incoerências. 
Aos liberais, pergunto se eles querem um mundo onde nenhuma pessoa precisa de habilitação para dirigir um carro ou portar uma arma. Duvido que respondam sim. Claro que na utopia com 7 bilhões de adultos responsáveis poderíamos atingir esse ponto, mas ninguém acha que estamos sequer perto disso, acha ?
Aos conservadores, pergunto se eles querem um alarme que toque em suas geladeiras sempre que passarem da segunda cerveja. Não me parece que seja por aí, certo?

Com o passar dos anos, está claro que o caminho é liberal, com limites. Depois de uma Antiguidade onde quase tudo era permitido, a Igreja estabeleceu na Idade Média critérios onde até o que a pessoa pensava era controlado. Impuseram isso a força. Milhões morreram até por pensar errado. 
Com a chagada do Iluminismo, a fé entrou em irreversível decadência. De lá para cá, aos poucos, vamos avançando no sentido de deixar o indivíduo fazer o que bem quer. Ninguém mais vai para a fogueira por ser ateu nos países ocidentais (bem... não se pode falar disso ainda no Oriente Médio). Não é mais crime ser homossexual em diversos, quase todos, países. Mulheres votam e trabalham na maior parte do mundo. Olhando da perspectiva de apenas um século, tivemos avanços sim. E relevantes. 
Mas ainda não chegamos a um ponto de equilíbrio. O aborto ainda é proibido em muitos países, e sempre por causa de motivos religiosos torpes (acho que motivo religioso torpe é pleonasmo, mas enfim...). Embora o arsenal legal seja muito mais favorável às mulheres hoje em dia, ainda falta implementar muita coisa na prática. O mesmo para homossexuais, com menor proteção jurídica. 

Meu ponto central, e demorei para chegar a ele, é até onde queremos que o Estado chegue. Recentemente, tivemos o caso de Adelir Carmem Lemos de Goes, obrigada a fazer uma cesária para o nascimento do filho. Segue link
Fui questionado sobre o que penso, e penso que não penso. Consigo imaginar uma série de razões para que a cesárea fosse necessária. Consigo imaginar que ela tenha cismado em não fazer sem justificativa aceitável. Consigo imaginar uma junta médica que, genuinamente preocupada com a saúde da paciente, tenha usado do Estado para obrigá-la a realizar o procedimento. Também consigo imaginar uma equipe médica tomando decisões com base em critérios errados e desatualizados. E consigo imaginar um promotor e um juiz apoiarem essa medida por ser induzidos erroneamente a uma decisão dessas.
Se foi certa a decisão, não sei. Não tenho conhecimento para opinar. Pode ser que a mãe estivesse errada ao não querer fazer a cesárea. Pode ser que a equipe médica estivesse errada ao forçá-la a fazer. É técnico demais para meu conhecimento. 

Mas antes de opinar sobre essa decisão judicial, o que precisamos mesmo é opinar sobre o alcance do Estado. Isso está uma baderna, e aqui não se trata de privilégio brazuca, é mundial. O mesmo estado que proíbe as drogas psicoativas, permite o consumo de álcool e tabaco. Não faz sentido nenhum. O mesmo estado que regulamenta a capacidade do indivíduo de dirigir ou portar armas de fogo, não cuida dos usuários de internet e donos de animais de estimação. Se os quatro podem causar graves danos ao próprio indivíduos e aos seus pares, por que apenas dois são regulamentados?
Se o Estado usa seu poder para retirar um medicamento perigoso de circulação (talidomida, por exemplo), por que permite que curandeiros vendam chás para tudo? E ainda tolera a prática da Homeopatia como algo sério (segue o mais recente estudo mostrando que não se trata da nada além de enganação).
Por que o Estado pode entrar na minha casa e permitir que eu me case com uma mulher ou com um homem (hoje já se pode, certo?), mas não com dois ou com dois de cada? Afinal, isso é um assunto de foro íntimo, não prejudica ninguém fora da relação.
Por que a maioridade é definida por uma idade fixa, mas que varia de país para país?
Por que certas profissões são rigidamente regulamentadas (médico, advogado) e outras não (líder religioso, atleta)?
Por que um feto é uma vida para o ponto de vista de se proibir o aborto, mas não é na hora de receber uma herança ou um seguro?
O que realmente precisamos, e o caso Adelir evidencia isso mais uma vez, é definir que sociedade queremos, e como alterar nossos parâmetros quando eles mudarem daqui a 20 anos. Porque mudarão, isso eu garanto.

7 comentários:

  1. Eu vi um comentário tão bom nos comments no link da reportagem do The Guardian sobre a farsa da homeopatia que você postou aqui que, embora não responda exatamente às perguntas que você fez, está relacionado diretamente com questionamentos atuais e que o seu texto aborda (vou postar em inglês mesmo, espero que não tenha problema): o que é certo? E o que deixa de ser? Porquê?

    "YeeofLittleFaith > PlatoApesSocrates
    09 April 2014 3:52am

    Firstly, why is this the case when so much knowledge is readily available, particularly now digitally?

    This is really a question that seeks to answer why is the world the way it is.

    Why do people get all antsy about new immigrants? Why do people believe in a global conspiracy to fake climate change? Why do people think that Malaysian aircraft has been taken to a hangar in Diego Garcia, and not just simply crashed into the ocean?

    The answer is that the social contract has been broken. You get brought up all your life to believe that if you work hard, you'll get married, get a house, have a nice enough life, retire, get a pension and then spend a dozen or so quality years relaxing, warm in the glow of what you have contributed to society.

    Instead, people are getting the global financial crisis, austerity, the end of privacy, lies told to get countries into war, porn and puritanism parading as entertainment.

    The social contract is broken and people don't know who they are anymore or why they're doing what they're doing. They can't trust the government, they don't trust scientists, they don't trust doctors whom they feel are in cahoots with pharmaceutical companies, and they definitely don't trust pharmaceutical companies.

    They'll get on comments sections like this, not to understand one another but to shout down anyone who doesn't agree with them. People no longer seek communion; they seek dominion.

    They scared and they're angry.

    Look around you. You know all this already."

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  2. Sobre a homeopatia, existem médicos sérios que a praticam e existem pesquisas sérias que também alegam que seus resultados são reais, faça uma busca um pouco mais detalhada neste sentido que você encontrará algo.
    Sobre o link, a mulher e seu "parto normal roubado", se os médicos não tivessem feito "nada" (nenhum procedimento cirúrgico) o que possivelmente teria acontecido é que o bebê teria morrido (a mãe não, pois o mecônico não traria complicações para ela, apenas para o bebê) pois isso seria uma evolução comum para um parto com as características descritas. Nesse caso, os médicos também seriam processados. Existe a possibilidade de que mesmo com 42 semanas, mesmo na posição pélvica e mesmo com mecônio a criança nascesse e sobrevivesse? Sim, que ficaria bem? Pouco provável, pois se aspirasse mecônico teria dificuldades respiratórias e poderia inclusive morrer em decorrência. (apenas para esclarecer mecônio é o primeiro "coco" do bebê, tem um nome especial porque como é fabricado na vida intrauterina tem características distintas do coco normal e aspirado mecônio, significa que a criança tendo feito um movimento respiratório ainda intra uterino teria respirado esse coco promovendo depósitos dele no pulmão).
    A questão é que hoje, em relação a parto, há MUITA desinformação na internet, para que uma mãe faça uma escolha boa e não se arrependa dela depois precisa ter FÉ em outras pessoas (médico, parteira, "doula" etc) pois não consegue coletar todo o conhecimento técnico necessário e porque EXISTEM divergências de opinião técnica. Veja, se o bebê resolve fazer um movimento respiratório e aspirar o mecônio não é uma ação que leva muito tempo, a diferença de 10 minutos pode significar a vida ou a morte desta criança SIM. A questão é, porque diabos, além de se preocupar com a sua saúde e da do seu bebê a mulher ainda tem que se preocupar de não poder ter tido o parto normal que tanto queria. Porque diabos ela tem que querer um parto do jeito A ou do jeito B? O parto deve ocorrer da melhor forma e não há jeito certo, se os riscos de um parto normal começam a aumentar (como estava ocorrendo nesse caso) a escolha natural da mãe realmente informada deveria ser de DIALOGAR com os médicos e tomar sua decisão e não se sentir roubada em uma escolha. Se ela estivesse bem assessorada e orientada, não iria para um hospital onde "as crianças que nascem de parto normal tem que chegar coroando" poxa, teve 42 semanas para escolher um local para ir e escolhe esse que ela mesma avaliou dessa forma? Não existe outro hospital? Outra questão é a aceitação, suponha que neste caso, a conduta médica estivesse correta (cesárea realmente fosse indicada), a mãe não deveria se martirizar por não ter tido um parto normal, mas sim estra feliz porque no final, tudo deu certo. Mas se nesse caso os médicos pudessem esperar um pouco mais mas não esperaram porque estavam na dúvida, bem os médicos deveriam ter mais experiência ou formação para fazer orientações e escolhas melhores, mas a troca aqui era entre preservar o desejo da mãe de ter um parto normal X a probabilidade crescente da morte da criança. A minha pergunta é realmente deve-se considerar a escolha da forma do parto da mãe sobre o risco de vida da criança porque a mulher ter o direito ao seu corpo? Por que o parto normal é assim tão importante hoje em dia a ponto de se contrapor ao risco de vida? Não há como afirmar que teria dado "errado" se ela tivesse tido o parto normal (existe sim a probabilidade da soma dos fatores contribuírem contra isso) por esse mesmo motivo, não dá para afirmar que a cesárea foi uma escolha "certa". Errado é ter que existir um jeito certo de nascer.

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    1. Falarei apenas da homeopatia, pois digito do celular neste momento.
      1) Fui eu mesmo paciente de Homeopatia por uns 3 anos e falo por experiência própria: essa bosta foi incapaz até de curar uma micose no meu pé. Vale menos que curandeiros xamanicos.
      2) Nunca vi uma pesquisa sobre Homeopatia com método duplo cego mostrar qualquer fiado de evidência de que ela funciona de fato além do efeito planejo.

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  3. Ainda não acredito que vou fazer isso...

    1) 3 anos? Amador, eu fui paciente de homeopatia por 10 anos e vi ela curar minha bronquite. Se experiência pessoal vale, empatamos.

    2) Talvez você esteja procurando nos lugares errados. Dá uma olhada em estudos veterinários (sim, eles são válidos, até porque é fato que sem a medicina veterinária, a medicina humana ainda estaria usando sanguessugas para curar febre). E também tenha em mente que estudo duplo-cego é interessante, mas não é sempre o ideal, muitas vezes um estudo natural é muito mais válido que um duplo cego.

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    1. 1) Posso colocar 4x1 ? Incluo na conta minha irmã, minha mãe e meu pai que, médico, colocou-nos e nos tirou dessa furada. Ele errava, mas sabia admitir isso.
      2) Discordo (não sobre a Veterinária: Veterinária é muito mais Ciência que a Psicologia, Sociologia e Antropologia somadas). Um estudo duplo-cego é aquele no qual o pesquisador que aplica o teste não sabe o que está testando, certo ? Então ele não tem influência sobre o resultado por fatores psicológicos quaisquer. Sem isso, nenhuma pesquisa é realmente isenta.

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  4. Poder, pode. Mas aí o placar vai para 5x4, minha família é maior. E nem estou falando dos parentes próximos ou de pelo menos um pesquisador livre-docente da USP, apenas do meu núcleo familiar mesmo.

    Mas aí é que está, estudos duplo-cegos são considerados, inclusive pelos cientistas, inefetivos em alguns casos e inviáveis em outros. E quem não sabe o que está testando não é o pesquisador, é quem está aplicando o teste. É mais difícil, mas como o pesquisador ainda é quem orienta a aplicação dos testes, ele pode sim influenciar o resultado.

    De mais a mais, estudo natural por definição não tem influência do pesquisador. Logo ela é tão isenta quanto um duplo-cego.

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    1. Percebi que estou errado nesta discussão, do ponto de vista biológico. Ao avisar pessoas adultas que elas precisam tomar remédio quando estão doentes, estou interferindo com as forças do darwinismo. Meu dever é ficar quieto e deixar a natureza fazer seu trabalho.

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