sábado, 29 de junho de 2013

A Parede Pintada

Já fui criança. Sim, faz tempo. Bastante...
E lá pelos idos de 1979, quando eu era criança o nosso Brasil também vivia um momento social turbulento. Era o início do movimento sindical. Greves de metalúrgico por melhores salários tomavam as páginas dos jornais. "Como assim ?", perguntava-se o cidadão comum, ainda assustado pelos anos de repressão do Regime Militar que, embora menos intensa do que no início daquela década, ainda tinha tentáculos por toda parte. Aquele tal de Luís Inácio era um sujeito diferente, por assim dizer.
E nesse clima social, ia para a escola. No caso, era uma escola de gente rica (jamais soube como diabos meus pais podiam pagar aquela escola), na rua Tabapuã, Itaim-bibi. Chamava-se Catavento. Simpático nome, não? A aqueles carros importados todos levando ou buscando as crianças na escola, rumando para o Morumbi depois disso.
E como era escola de bacana, tinha que ter coisa chique para os estudantes. Nós, na virada dos 4 para os 5 anos de idade, tínhamos aula de inglês. Nada mais do que contar até 10, meia dúvida de cores e a música dos indiozinhos. "The book is on the table" seria avançado demais.
Um belo dia, tivemos aula de artes antes do recreio. Papéis, pincéis e tintas. Aquela baderna de sempre. E alguém errou, mas errou feio mesmo, no final da aula: as tintas foram esquecidas na sala de aula. Percebam a combinação explosiva: crianças, tintas, ausência de supervisão e paredes brancas. Eram brancas...
Alguns mini-vândalos atacam as (pelo que me lembro) imaculadas paredes da sala e o estrago foi épico. Impressionante como 3-5 crianças de 4-5 anos conseguem cobrir uma área tão grande de parede em tão pouco tempo. Nenhum pintor faz isso. 
Não fiz parte disso. Se tivesse ficado na sala, talvez tivesse feito, sem não que eu era. Mas não fiz. E no retorno do recreio, veio nossa professora de inglês para cantar a música do indiozinho e, quem sabe ensinar que preto era "bléque". 
A moça teve um surto psicótico ao ver o estrago na parede. De fato, a bronca tinha total procedência, mas simplesmente não surtiu efeito. Num enfoque equivocado mas compreensível, ela buscava os responsáveis pela obra de arte ainda fresca. E, naturalmente, ninguém se apresentou. Chegou-se a um impasse.
A professora queria cabeças e ninguém estava disposto a se oferecer. Na realidade, enquanto escrevo este relato, fico em dúvida se foram mesmo crianças da minha sala. Bem ou mal, poderiam ter sido de outra classe, não? Mas o terror continuava. A professora interrogava e ninguém sabia de nada (em um estilo que o mesmo Luís Inácio usaria anos depois). Ela, então escalou a coisa toda:
- Se os culpados não aparecerem, a classe inteira vai embora para casa pintados de índio. 
Deve ter sido inspiração pela música do indiozinho. Ainda assim, aquilo era um absurdo completo: punir todos pelo erro de alguns não procede, nunca, jamais, em tempo algum. Obviamente, ninguém se apresentou para assumir a culpa, e ela cumpriu a ameça: pintou o rosto de todos da sala, um por um, e nos fez ir embora para casa assim. Eu ainda fiquei para o final da fila na esperança de que o Lanterna Verde ou o Batman me tirasse daquele perrengue. 
Não funcionou. 
Lembro de entrar no carro da minha mãe aos berros. Humilhado, revoltado, agredido em minha pueril dignidade. Minha mãe perguntou pelo ocorrido apenas em casa quando mesmo depois do banho eu ainda chorava. A tinta saíra, a agressão não. Expliquei, ela deu de ombros e nada fez para defender o filho. Era hora de agir, portanto.

Na aula seguinte com a mesma professora, agitei os colegas um por um com antecedência. Ao sair a professora de artes, todos saímos juntos para o corredor e ficamos em frente à porta. A professora de inglês chegou e perguntou:
- O que está acontecendo aqui ?
- Greve - declarei eu.
O olhar de pânico que ela fez era a força que eu precisava:
- A gente não vai mais ter aula com você. Vá embora !
Ela perdeu o queixo. Depois de se recobrar do choque, tentou usar de uma autoridade que perdera uma semana antes com os pincéis e tintas utilizados. As ordens para entrarmos na sala foram ignoradas. Estávamos revoltados, irritados e unidos.
Devem ter sido umas 2 horas de negociação e não cedemos um milímetro. Queríamos outra professora, uma que não pintasse nossos rostos sem motivo. 
Vencemos. 
Lembro da cena da professora aos prantos na sala da diretora. Aparentemente, chorou tanto quanto cada um de nós. Ela havia perdido completamente o controle de uma sala de aula com crianças (monstros ?) de 4-5 anos. A diretora não podia demiti-la, mas isso não nos importava ou sequer fazia sentido. 
Vencemos mesmo: na semana seguinte, veio outra professora. 

Sim, amigo leitor, eu já fui manifestante um dia.

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